Volume 13 Edição 1 *Autor(a) correspondente therezacarvalho@id.uff.br Submetido em 6 fev 2025 Aceito em 9 abr 2025 Publicado em 16 abr 2025 Como Citar? CARVALHO, T. C. C.; STROZENBERG, A.; VELASCO, F. C.. Rio de Janeiro: praia, quiosques, bicicleta, humor e Instagram. Coleção Estudos Cariocas, v. 13, n. 1, 2025. O artigo foi originalmente submetido em PORTUGUÊS. As traduções para outros idiomas foram revisadas e validadas pelos autores e pela equipe editorial. No entanto, para a representação mais precisa do tema abordado, recomenda-se que os leitores consultem o artigo em seu idioma original. | Rio de Janeiro: praia, quiosques, bicicleta, humor e Instagram Rio de Janeiro: beach, kiosks, bicycles, humour and Instagram Río de Janeiro: playa, quioscos, bicicletas, humor e Instagram Thereza Christina Couto Carvalho1*, Alberto Strozenberg2 1Professora Titular PPGAU/UFF, Niterói, RJ, ORCID 0000-0002-5980-1430, therezacarvalho@id.uff.br 2Engenheiro Estatístico, pesquisador RCORT/PPGAU/UFF, Niterói, RJ, 3Arquiteto e Urbanista pesquisador, RCORT/PPGAU/EAU/ UFF, Niterói, RJ, ResumoEste artigo avalia o desempenho do projeto urbanístico implantado na costa praiana do Rio de Janeiro denominado Projeto Rio Orla. Trata da mobilidade sustentável, das ciclovias, da morfologia evolutiva que o distingue e das repercussões que alcança na imprensa - sob a ótica do humor dos chargistas à época da sua realização - e seus desdobramentos digitais na atualidade, no Instagram. Abrange três trechos: do Leme a Copacabana, do Arpoador ao Leblon e São Conrado. Destaca-se a potência revelada do projeto ao longo da sua duração, apoiando variadas formas de apropriação social e respectivas transformações transitórias cumulativas. Palavras-chave: cidade, mobilidade, orla, Rio de Janeiro, morfologia urbana, apropriações. AbstractThis article evaluates the performance of the urban project implemented on the beach coast of Rio de Janeiro called Rio Orla Project. It deals with sustainable mobility, bike lanes, the evolutionary morphology that distinguishes it and its repercussions in the press - from the perspective of cartoonists at the time of its realization - and its digital developments today, on Instagram. It covers three seashores: from Leme to Copacabana, from Arpoador to Leblon and St. Conrado. It stands out, from its inauguration up to today, by supporting various forms of social appropriation and their cumulative transitory transformations. Keywords: city, mobility, waterfront, Rio de Janeiro, urban morphology, appropriations. ResumenEste artículo evalúa el desempeño del proyecto urbano implementado en la costa de playa de Río de Janeiro llamado Proyecto Río Orla. Se ocupa de la movilidad sostenible, los carriles para bicicletas, la morfología evolutiva que la distingue y las repercusiones que alcanza en la prensa, desde la perspectiva de los dibujantes en el momento de su realización, y sus desarrollos digitales hoy, en Instagram. Cubre tres extractos: desde el Leme hasta Copacabana, de Arpoador a Leblón y San Conrado. Destaca el poder revelado del proyecto, a lo largo de su duración, respaldando varias formas de apropiación social y sus transformaciones transitivas cumulativas. Palabras clave: ciudad, movilidad, frente marítimo, Río de Janeiro, morfología urbana, apropiaciones |
A ocupação da orla tem história relativamente recente, começando ao final do século XIX. Foi promovida, desde então, como objeto de desejo de consumo “moderno” para grupos sociais específicos e ricos, por diferentes grupos econômicos que almejavam estender o território sobre o qual detinham o monopólio do transporte – os bondes elétricos. Moderno enquanto costumes importados da burguesia europeia, a prática dos banhos de sol à beira mar foi registrada por diferentes pintores desde meados do século XIX. Adotava-se a estratificação socioespacial como propósito de configuração urbana na ocupação da costa praiana, o que provocou desdobramentos de longa duração.
O Estado, ao definir a forma da cidade, concentrou os recursos públicos no embelezamento da Zona Sul, privilegiando as classes dominantes e incentivando o consumo dos bairros burgueses. Sua participação foi indiferente às indústrias que se multiplicavam na cidade e que se expandiam para além do distrito central, urbanizando novas áreas com recursos próprios, criando empregos, atraindo mão de obra e ao mesmo tempo ocupando os subúrbios e gerando favelas. Abreu (1987, p. 72) destaca que “financiadores tanto do consumo quanto da produção, os bancos nacionais e estrangeiros beneficiam-se das ações dos setores público e privado, aumentando sua influência em amplas áreas da economia”. Instalava-se e acelerava-se, assim, o processo de estratificação socioespacial da cidade. Aparentemente, pouca coisa mudou.
A divulgação dos efeitos terapêuticos dos banhos de mar, associada ao consumo de luxo e reforçada pela adesão e frequência recorrente de aristocratas, ampliou a atratividade desses balneários e sua reprodução como modelos de referência para outras partes do mundo, chegou ao Rio de Janeiro como “projeto praiano-civilizatório” (O’Donnell, 2013) durante a administração do Prefeito Pereira Passos em 1903. O apelo a ocupar as praias com “elegância” surte efeito a partir de 1920, com repercussões imobiliárias na década de 1940, e desde então, passou a associar a imagem do bairro à nova elite do Rio.
O Projeto Rio Orla, inaugurado em 1992 na administração do Prefeito Marcello Alencar, propôs a valorização do espaço público, cujos frutos repercutem até hoje. Este artigo trata desse ‘capital genético’[1] acumulado na beira-mar carioca, desde então, sob a ação do citado projeto e de suas transformações, além das apropriações individuais por cada um de nós, no período de 1991 a 2024.
A pesquisa, cujos resultados apoiam este artigo, teve início no pós-doutoramento de um dos seus três autores e tratou do papel do espaço público na articulação de centralidades, na configuração do lugar. Esta configuração, entendida como um processo incremental, jamais está completa e a sua incompletude é parte importante da sua atração.
A continuidade da pesquisa pós-doc encontrou parceria, dez anos depois do seu início, com o projeto PLACE (Produção do Lugar por Ação Comunitária Evolutiva) conduzido pelo Laboratório de Urbanismo incremental Gerado pela Arquitetura e pelo Reuso e sediado na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, Portugal. A perspectiva dos colegas portugueses privilegia a coprodução com a sociedade e o desenho conjunto de soluções cumulativas e o reuso de materiais. Envolve, portanto, a participação ativa no redesenho com a comunidade. O nosso caminho de pesquisa explora outras possibilidades de apropriação e desdobramentos a seguir explicitados.
O procedimento de investigação adotado na pesquisa busca reconhecer os processos de configuração da cidade no cotidiano. Parte da identificação das interfaces entre heranças e permanências, intervenções disruptivas projetuais, o planejamento urbano e os usos sociais, econômicos e culturais praticados nos trechos escolhidos, todos apoiados na conectividade e mobilidade.
Nessa perspectiva analítica, o entrelaçamento de escalas de intervenção, o planejamento urbano, o projeto e a configuração espontânea, a partir das apropriações transitórias que se manifestam no cotidiano dos moradores e visitantes, ganham destaque. Assim, também, as interfaces que essas intervenções criam no território, que despertaram reações populares antagônicas na época da sua construção, apropriadas e difundidas diferentemente na atualidade via Instagram.
A apreensão da paisagem cotidiana se coloca como importante viés de leitura da cidade como artefato (Rossi, 2016) cuja escala da experiência citadina revela mecanismos de sua construção por múltiplos agentes. Conhecida como um espaço de disputa, a cidade tem sua noção de pólis revisitada continuamente por suas representações, discursos e significados. Essas plataformas da vida social urbana, genuinamente coletivas, não estão meramente contidas em sua materialidade, à medida que passam a dividir suas fronteiras de sentido com os olhares virtuais, como nas redes sociais. A experiência virtual das cidades pode apresentar um desenvolvimento em curso de novos vetores de interpretação desses espaços.
O contexto informacional contemporâneo reforça cada vez mais o entendimento das redes como espaço público, atribuindo-lhes o desencadeamento de “novos espaços de interação, de visibilidade e legitimação” (Pereira, 2018, p. 19). A internet tem se demonstrado capaz de lançar suas possibilidades de críticas, comportamentos e manifestações à fricção da realidade urbana off-line. O rebatimento da discussão nas redes sobre territorialidades tem evidenciado cada vez mais a relevância entre o território em sua escala local e sua cadeia de valores virtuais, sugerindo que os fragmentos urbanos possam compor os elos do hipertexto cibernético: a paisagem como componente de um hiperlink digital. Nessa condição, teríamos uma nova forma de apreensão em tempo integral, vide um cotidiano transitoriamente revisto entre a vida urbana e as redes sociais.
Na pesquisa em andamento adota-se o conceito de morfologia evolutiva (Conzen, 1967) para expressar a incompletude da forma urbana, sempre em construção. Singularidades atrativas, em seis dimensões qualitativas que distinguem o processo de sedimentação dinâmica nos bairros contemplados, alimentam a permanência ou as mudanças de rotas e percursos (Carvalho, 2019). São essas: a dimensão ambiental que define a linha da costa e a moldura de morros, a dimensão econômica que pautou a sua configuração na parceria com o mercado imobiliário, a dimensão social de acolhimento e rejeição que despertaram, a dimensão cultural que marcou diferentemente o imaginário do morador/observador, as regras de produção e de consumo, que buscaram limitar usos, com diferentes concepções de abuso que foram mudando ao longo do tempo, e tudo em conjunto apoiado pela conectividade e mobilidade proporcionada por distintos modais de transporte.
O entrelaçamento dessas dimensões emerge, neste estudo, sob a forma de distintos padrões espaciais de sedimentação dinâmica, em fases sequenciais ou simultâneas, abrangendo a singularidade da oferta que atrai (força atrativa), a demanda e a fruição dessa oferta que reúne pessoas naquele percurso (agregadora) e a consolidação valorizadora desse conjunto ao longo do tempo. Essas dimensões se mantêm ativas na dinâmica urbana atual da orla, a despeito dos aplicativos como o “ifood” por se apresentarem vinculadas ao território pela atração dos atributos ambientais – praia, mar, exposição solar.
Nessas condições, os referidos padrões dinâmicos de sedimentação apoiam e explicam a localização de novas atividades comerciais transitórias ao longo dos trechos selecionados. Esta pesquisa investiga como os diferentes tecidos urbanos transitórios, em confecção ao longo do calçadão, dialogam com as rotas consolidadas de conexão viária de transportes coletivos, de pedestres e ciclistas. Procura desvendar como esses circuitos são interrompidos por novos objetos, novos percursos inseridos no cotidiano em decorrência de novos usos. Reconhece as repercussões episódicas dos grandes eventos que passaram a ter e fazer lugar na praia, cujas singularidades e brilhos atraem a presença e o registro devidamente compartilhado no Instagram, do prestígio vivido, ainda que por empréstimo temporário. Difundidos nas redes sociais em “tempo real”, “que se reduz à ponta da atualidade” (Han, 2021, p.15) essas imagens interferem ativamente na formação do imaginário.
Os “fatos” online apontam desafios da leitura da cidade a partir das ideias dos usuários da internet, a saber, dentre outros, a sua instantaneidade e o discurso autocentrado. Assim, a produção das imagens no Instagram permite a visualização do modo que o usuário assiste a paisagem indissociadamente da maneira como gostaria de ser visto. Nesse sistema, também é válido destacar como os algoritmos dessas empresas de tecnologia trabalham para potencializar ou não os conteúdos tratados como relevantes. Portanto, a partir dessas manifestações, a leitura do cotidiano apresenta tensões entre a individualidade e coletividade frequentemente reforçadas ou reinventadas.
Praças, passeios, percursos, bordas e eixos viários de ligação, consolidados ou transitórios, mantêm ainda, na sua forma e inserção na malha da cidade, relações recíprocas de intercomplementaridade. A localização desses elementos no tecido urbano, materializando a interseção entre o público e o privado, entre movimento e lugar, entre os âmbitos distintos do espaço edificado e aberto, entre arquitetura e planejamento, entre o simbólico e o utilitário, passaram agora a demandar a atenção simultânea às pessoas, ao ambiente físico e às suas numerosas relações virtuais veiculadas pelas redes sociais.
O Instagram, criado inicialmente para compartilhamento de fotos, atualmente acumula diversas possibilidades de criação e compartilhamento multimídia e de interação. A empresa tem um relevante reconhecimento pelo uso comercial e publicitário da rede, face à sua capacidade de entrega de conteúdo com grande alcance. A rede social é reconhecida pela sua popularidade e instantaneidade, entrelaçando o dia a dia dos usuários cadastrados com a respectiva produção de mídias.
A aplicação do procedimento de leitura, anteriormente referido, abrangendo transformações morfológicas e suas repercussões no passado - na imprensa e, na atualidade - nas redes sociais, mais especificamente no Instagram, será feita nos trechos selecionados do Projeto Rio Orla. Buscou-se revelar as diferentes formas de apropriação e de visibilização das ciclovias e do calçadão, destacar a malha urbana transitória do conjunto de percursos físicos pontuados por registros virtuais de imagens “instagramáticas”, sobrepostas à estrutura consolidada dos trechos escolhidos.
A operacionalização da pesquisa envolveu observação no campo, levantamento documental em instituições de planejamento urbano e em jornais da época da construção do projeto e seleção de critérios como chaves de busca na rede social Instagram.
A seleção de conteúdos retirados da rede social, relacionados aos trechos analisados, adotou a ferramenta de busca do aplicativo, sob o critério de localização das suas praias. Observaram-se praias de Copacabana, Ipanema e São Conrado para interpretar os três recortes estudados. A localização é uma informação opcional que os usuários podem sinalizar os locais que estiveram no momento da criação da mídia ou que tenham relação com suas publicações. Assim, é possível utilizar a localização como uma etiqueta para encontrar conteúdos relacionados ao debate desse trabalho.
Soma-se a esse procedimento, a classificação da própria rede dos conteúdos mais recentes no momento da busca e também a seleção do registro de cenas que possam representar a apropriação cotidiana dos seus calçadões, quiosques, ciclovias e dimensão ambiental.
O Projeto Rio Orla se inicia através de um concurso público de âmbito nacional, lançado em junho de 1990 pela Prefeitura do Rio de Janeiro, coordenado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil/RJ, IAB-RJ, sob o título de “Estudo Preliminar para Projeto Urbanístico da Orla Marítima da Cidade do Rio de Janeiro”. As obras foram do início de 1991 até a reunião Rio 92 Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento.
O prefeito que assumiu o governo em 1989, Marcello Alencar, encontrou a Cidade em estado de choque pela decretação de falência pelo prefeito anterior, iniciando um programa de limpeza e manutenção das ruas para recompor o status de vida urbana. O diretor do IPLANRIO, coautor deste artigo, comenta o contexto da época das obras em relatório técnico não publicado, produzido no âmbito do IPLANRIO:
Em termos de planejamento, afim de recuperar o entusiasmo da população pela cidade, surgiu a ideia de restaurar locais emblemáticos como Cinelândia, Lapa, Rua Uruguaiana, Avenida Presidente Vargas (todos no Centro !!) e, de maneira ousada e profunda a Orla do Leme ao Ponta (Strozenberg, 1991).
Eram intervenções não prementes, desnecessárias, ainda mais diante da calamidade dos serviços municipais. No entanto, observa-se, até hoje, que a população gosta que melhorem a sua cidade e a embelezem, desde que possam utilizá-la, pois não se trata de castelos, prédios de Tribunal de Justiça, etc. A orla da Barra ao Pontal praticamente não era urbanizada, porém tocar na orla consolidada como Copacabana, Ipanema e Leblon, seria um sacrilégio? Daí a fácil frutificação das críticas.
O concurso do Rio Orla estabeleceu dois grupos de praias. Grupo A, praias da Barra, Recreio e Pontal, com 20 km de extensão, ainda com pouca intervenção urbana e Grupo B, praias do Leme, Copacabana, Ipanema, Leblon e São Conrado, com 9,7 km de extensão, com urbanização definida.
Neste artigo vamos nos concentrar na análise do desenvolvimento pós o Rio Orla das praias do Grupo B, situadas na Zona Sul, ilustradas nas figuras 1 e 2.
Figura 1: Cartazes de divulgação utilizados nas apresentações do projeto para os moradores.
Fonte: IPLANRIO
Figura 2: Prancha do projeto na praia de São Conrado.
Fonte: IPLANRIO
A implementação de grandes projetos públicos de intervenção urbana tem sido uma constante no urbanismo moderno. Cada um destes projetos busca o que Yannis Tsiomis descreve como a reconquista da cidade “contra a simplificação das funções em que são reintroduzidos conceitos que se tornam temas arquiteturais: identidade, centralidade, articulação, conexão, flexibilidade, mobilidade”. (Rego; Andreatta, p. 104).
O projeto tratou da implantação da ciclovia, melhoria nas calçadas e paisagismo, iluminação, implantação dos quiosques, estudo de trânsito, estacionamento e acessibilidade. O Edital do concurso definiu os seguintes itens:
Várias colaborações ao projeto foram feitas pelas associações de moradores e de temas específicos: melhoria do caminho dos pescadores pela Associação dos Moradores do Leme; área de pouso de asa-delta em São Conrado pelo Clube do Voo Livre; estacionamento para carga e descarga dos windsurfistas pela Associação de Windsurf e rampas para paraplégicos pela Associação de Paralisia Cerebral.
As características das principais intervenções foram as seguintes: Estacionamento à beira mar foi proibido no calçadão de todas as praias, do Leme a São Conrado, liberando a vista da praia, “aproximando” o calçadão e a praia da população. A vista para a praia ficou acessível ao pedestre.
As soluções encontradas para cada local foram uma preocupação do projeto, com estacionamento à esquerda da faixa de rolamento no Leme e São Conrado e no canteiro central em Ipanema e Leblon. Esta solução não era possível em Copacabana pois o canteiro central, projeto do Burle Max, é tombado (felizmente).
Por sua vez, foi implantada a primeira ciclovia da cidade, dotada de sinalização, faixas de cruzamento e adaptação à passagem de pessoas com deficiência e carrinhos de bebê.
A sinalização na ciclovia foi fundamental para minimizar os conflitos nas travessias de pedestres. Criou-se junto aos semáforos um módulo de travessia com a faixa de pedestre alinhada às rampas de pessoas com deficiência e carrinhos de bebê e ciclistas. A sinalização no piso orientava o próprio ciclista.
No Leme e Copacabana o espaço do estacionamento à beira mar foi ocupado pela ciclovia. A retirada do estacionamento ao longo da calçada da praia para a implantação da ciclovia em Ipanema e Leblon foi bem mais complexa pois o calçadão não tem a mesma largura. A concepção inicial do projeto era estreitar a generosa calçada junto aos prédios, trazendo as pistas de rolamento. Mas pela reação categórica dos moradores das avenidas Vieira Souto e Delfim Moreira, optou-se por estreitar o canteiro central e refazer os cruzamentos, giros e agulhas. Estas mudanças acarretaram a retirada de árvores e o replantio de outras após as obras e foram alvo de severas críticas e campanhas contra o projeto. Era um excesso! E para que? Bicicletas!!!
No que lhe concerne, os quiosques responderam à substituição dos trailers e carrocinhas por equipamentos com água, esgoto, energia elétrica com visíveis ganhos de higiene e limpeza. O modelo original do quiosque nas praias da Zona Sul era de fibra de vidro, com 5,06 m² (2,25m x 2,25m), implantados a uma distância de cerca de 125m um do outro (próximo aos eixos das ruas transversais).
Foram feitas reuniões com a comunidade após o resultado do concurso para aprimorar alguns itens. Uma das propostas foi a vedação expressa da utilização de letreiros luminosos de cunho comercial nos quiosques, o que de fato ocorreu, e não restando nem mesas e cadeiras, inclusive, para não concorrer com os restaurantes do lado interno da Avenida Atlântica.
A substituição dos trailers e carrocinhas, figuras 3 e 4, foi um processo de negociação a cargo do IPLANRIO que, após algumas manifestações contrárias, constituiu comissões de trailistas com técnicos da Prefeitura para chegar a consensos. Eram, na época, 79 pontos no Leme e Copacabana, 61 em Ipanema e Leblon, 40 em São Conrado e 290 na Barra. Total de 470 para um total de 306 quiosques novos. A diferença foi absorvida por membros da mesma família ou associação societária.
Figura 3: Modelo original do quiosque na Zona Sul, sem mesas, cadeiras nem cartazes luminosos e projeto do quiosque.
Fonte: Acervo dos autores
Figura 4: Desenhos técnicos do modelo original do quiosque na Zona Sul.
Fonte: IPLANRIO
Em São Conrado, figura 5, o estacionamento junto à praia foi deslocado para o outro lado, junto aos prédios, possibilitando a implantação da ciclovia. O calçadão foi alargado para facilitar as caminhadas e corridas, mantendo a sua estrutura física apoiada sobre o muro de arrimo existente com grande desnível em relação à areia.
Os quiosques em São Conrado foram colocados conforme o uso do trecho. Observou-se a localização dos dois grandes hotéis da época. O Hotel Nacional e o Intercontinental. Há um grande terreno sem utilização do Gávea Golf and Country Club. Há alguns prédios assentados no centro do lote, gradeados, fechados, voltados para o seu interior. Na área da Praia do Pepino foi feito um campo de pouso para asas-deltas e parapentes, cercado por uma praça com equipamentos infantis. O Clube São Conrado de Voo Livre possui sua sede no local.
Figura 5: Desenho do projeto em São Conrado.
Fonte: IPLANIO
As melhorias para a iluminação pública se deram através de altos postes no canteiro central e a criação de uma iluminação específica para as areias da praia, possibilitando os jogos de futebol e vôlei à noite. No Arpoador foi instalado um poste de luz que permitia aos surfistas permanecerem durante a noite.
Quanto ao paisagismo, considerou-se que todas as espécies existentes deveriam ser preservadas, tirando-se partido do porte da vegetação. Somente foram substituídas as deterioradas.
No balanço final, Copacabana não alterou o número de árvores, Ipanema perdeu 123 (de 285 para 162) e São Conrado ganhou 127 (de 163 para 290). A redução em Ipanema, fruto do estreitamento e utilização para estacionamento do canteiro central, causou uma grande polêmica, como veremos.
A grande escala física da área estudada e, por conseguinte, da trama viária e seus entrelaçamentos com as malhas configuradas, cotidianamente, de percursos transitórios, dificultou a ilustração e obrigou, para efeito deste artigo, a descrição dos resultados (figuras 6, 8 e 9).
Figura 6: Praias do Leme e Copacabana ressalvando as 3 estações de metrô.
Fonte: Google Earth (online)
4.1.1 Morfológica
O Posto 6, extensão da orla que liga o Leme ao extremo de Copacabana, é uma grande atração na cidade. É alimentado pela memória do passado de privilégios e privilegiados, ainda evidente na forma do luxuoso Hotel Copacabana Palace.
Abrange 100 quarteirões, 78 ruas, 5 avenidas, 6 travessas e 3 ladeiras, numa área de 7,84 quilômetros quadrados. A via de maior extensão é a Avenida Atlântica, com 4.150 metros. Entre 1920 (com 17 mil habitantes e 1,5% da população total da cidade) e 1970 (com 250 mil habitantes e 6% da população total da cidade), o crescimento demográfico do bairro foi de espantosos 1.500%, enquanto a cidade, no mesmo período, crescia 240% (O’Donnell, 2013). Segundo a enciclopédia virtual Wikipédia, Copacabana é considerada um dos bairros mais famosos e prestigiados do Brasil e um dos mais conhecidos do mundo, referida como a Princesinha do Mar e Coração da Zona Sul. Seria o bairro mais populoso da Zona Sul, segundo o censo de 2010, com mais de 140.000 habitantes dos quais cerca de 1/3 (cerca de 43.000 habitantes) é composta majoritariamente por idosos com idade igual ou superior a 60 anos, o que o distinguiria como o bairro mais ‘velho’ do país. A significativa perda populacional, entre 1970 a 2010, é acompanhada de vários sinais de decadência apontados no guia turístico inglês Time Out (2024) como alerta aos seus leitores. Os térreos da maioria dos prédios localizados nos grandes eixos do bairro apresentam grande quantidade de lojas de produtos variados, assim também como congestionamentos de trânsito, recorrência de furtos e roubos e prostituição. Ainda assim, a vida noturna é muito movimentada com ótimos restaurantes, barzinhos, além dos 4 quilômetros de praia.
A evolução dos quiosques em Copacabana e do uso do calçadão é a mais intensa mudança em todo o projeto Rio Orla. A inicial limitação a um simples ponto de venda de refrigerantes e sanduíches com atendimento em pé, foi sendo modificada passo a passo, em princípio com a permissão de mesas e cadeiras, seguindo de cartazes luminosos dos nomes dos quiosques e de marcas comerciais.
Esse conjunto de atributos morfológicos, dinamicamente inter-relacionados, se distribuem diferentemente ao longo dos 2 eixos paralelos estruturantes do bairro, a Avenida Atlântica e a Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Apoiados nas três estações de Metrô e inúmeras linhas de ônibus que dão acesso a usuários e visitantes de outros bairros da cidade, além da ciclovia, configuram em conjunto a malha de percursos, díspar, transitória dos caminhos recorrentes, cotidianos dos moradores que apoiam os caminhos extraordinários dos visitantes. Ligam o tecido do bairro à orla.
4.1.2 Cultural
O bairro conta, desde 1980, com a Feira Noturna de Artesanato e Arte da Orla de Copacabana, no posto 5. Abre às 17h, pouco antes de escurecer. O Forte de Copacabana, no posto 6, é outra atração turística. O Museu da Imagem e do Som, IMS, substituto da boate Help desde 2010, está com obras paradas e tapumes que subtraem a atratividade do trecho.
A praia de Copacabana, além do Réveillon, é palco de inúmeros eventos artísticos e esportivos, ocupando o espaço com estruturas para grandes acontecimentos entre a Avenida Princesa Isabel até depois do Hotel Copacabana Palace, Rua Fernando Mendes.
A área da praia à frente do Hotel Copacabana Palace foi se tornando um local de eventos. No hotel, a pérgola com o restaurante/bar localizado à volta da piscina esvazia a importância da relação com a praia.
O Copacabana Palace se apropria da praia quando é de seu interesse para prestigiar a si próprio. Por ocasião das Olimpíadas em 2016, com jogos oficiais na praia bem a sua frente, foi construída uma passarela sobre a Avenida Atlântica ligando sua varanda à arena dos jogos. Por ocasião das comemorações dos seus 100 anos em agosto 2023 planejou um grande show gratuito num enorme palco na areia.
4.1.3 Conectividade
A ciclovia do Rio Orla foi a maior contribuição para o gradativo aumento do uso de bicicletas na cidade. Sobretudo para lazer, esporte e transporte. A rede cicloviária continua em expansão. Curiosamente a ciclovia foi um dos pontos mais criticados no projeto, custando caro ao governo bancar a introdução deste novo modal de transporte.
Outro aspecto da mobilidade é a evolução do metrô neste trecho. A chegada do Metrô, estação Cardeal Arcoverde, em 1998 foi de forte impacto em Copacabana. O metrô completou também em 1998 a linha 2, Estácio-Pavuna, possibilitando a viagem Estácio-Cardeal Arcoverde. A rua Rodolfo Dantas é o trajeto mais próximo à praia a partir desta estação. Bem na esquina do Hotel Copacabana Palace.
Em 2003, é inaugurada a Estação Siqueira Campos e em 2007 a Estação Cantagalo, completando as 3 estações que servem ao bairro. Porém o metrô só passou a funcionar aos domingos a partir de 2004. Os ônibus, lotados, eram o único transporte público aos domingos. E seguem sendo importantes, especialmente no verão, com ofertas reduzidas de veículos, em diversas linhas que fazem a ligação com a Zona Norte via túneis Rebouças e Santa Bárbara, ou mesmo o aterro do Flamengo. E repetidamente são alvos de revistas policiais.
Os fluxos de pedestres que saem do metrô configuram rotas para os pontos mais próximos do calçadão, fluxos com diferentes intensidades em diferentes horas do dia, que se dispersam na areia da praia e se conectam no calçadão. Destaca GEHL (2013) que uma das grandes atrações do espaço público é ver o outro, ver pessoas se divertindo cada um à sua maneira. Assim sendo, esses pontos de passagem e de concentração atraem a atenção, por si só, sobretudo dos visitantes externos.
4.1.4 Gestão
O concessionário dos quiosques obteve autorização da Prefeitura para alterar o seu modelo. Passou a contar com banheiros e cozinha no subsolo e amplo espaço para mesas, cadeiras, toldos (alguns com sofás e poltronas), com significativa ocupação da área pública no calçadão, conforme apresenta a figura 7.
Figura 7: Quiosque atual com ampla área de ocupação.
Fonte: Acervo dos autores
Esta modernização foi concluída em Copacabana por conta da Copa do Mundo em 2014. Os quiosques viraram restaurantes. A distância entre eles passou a ser variada, conforme a atratividade, com aumento de atividades de vendedores avulsos no calçadão de produtos não alimentares. Esculturas de areia vinculam algumas dessas áreas com paisagens fabricadas, aparentemente semelhantes, assim como ambulantes marcando trechos dos percursos.
Assim o calçadão passou a ter uma vida quase independente da calçada interna da Av. Atlântica que segue com forte presença de restaurantes, a maioria bem antigos. Como não surgiram reclamações pelo aumento de proporção dos quiosques, antes simples pontos de venda em pé e atualmente com expressiva concorrência, presume-se que há demanda para todos, público estratificado.
Dentre os clientes destaca-se a forte presença de turistas, tanto de um lado como de outro da Av. Atlântica. No Leme e Copacabana há vários hotéis na beira mar e inúmeros nas ruas transversais.
O Arpoador segue com as mesmas características de um recanto protegido, mas de fácil acesso de pedestres vindos pela Avenida Vieira Souto ou pelo Parque Garota de Ipanema, Rua Francisco Otaviano. Absorveu o crescimento de um pequeno restaurante na entrada da rua de pedestres.
Figura 8: Praias de Arpoador, Ipanema e Leblon, com as 4 estações de metrô.
Fonte: Google Earth (online)
4.2.1 Morfológica
Com a obra do Rio Orla finalizada, nas vésperas da Conferência Rio 92, a orla das praias do Leblon a Copacabana estava renovada. Sem estacionamento próximo à beira mar, as ciclovias começaram a ganhar adeptos com frequência maior que a estimada. E a cidade vivia o momento de valorização ao meio ambiente, ao clima, à natureza. Oportunamente, a Prefeitura estabeleceu o programa de criação de área de lazer aos domingos e feriados com fechamento ao trânsito de carros nas faixas contíguas ao calçadão e ciclovia. É uma formidável extensão do calçadão. Destinada a pedestres, ciclistas, carrinhos de bebê, uso de patins e patinetes. Desde 1992, esta área de lazer na orla tem sido muito utilizada, inclusive para passeatas e manifestações.
4.2.2 Gestão
A modernização dos quiosques de 2016 ainda não atingiu todos os equipamentos. Segue-se a lei da procura e oferta.
O Hotel Fairmont, na Av. Atlântica no Posto 6, e o Hotel Fasano, na Av. Vieira Souto em Ipanema, ambos classificados como 5 estrelas, fizeram tentativas de ocuparem quiosques bem em frente às suas instalações, utilizando os próprios nomes dos hotéis, com atendimento especial a seus hóspedes embora sem exclusividade. Foi uma forma de se aproximarem do calçadão.
As experiências não prosseguiram, interrompidas pela pandemia, e seus efeitos não foram estudados por este grupo. O prestígio do nome Fasano emprestou ao quiosque que ocupava um capital genético diferenciado que o distinguiu para abrigar o melhor restaurante da orla praiana.
4.2.3 Cultural
O calçadão com certa presença de turistas tem grande uso para caminhadas dos moradores, apesar de dividir sua atração com a orla da Lagoa Rodrigo de Freitas. Há também comércio varejista e esculturas de areia. Os eventos que acontecem nestas praias são limitados, não recorrendo a grandes montagens. Ultimamente acontecem manifestações políticas na areia da praia, com imagens registradas e divulgadas pelas redes sociais.
A mesma partição de demanda com a Lagoa ocorre na ciclovia de Ipanema e Leblon, especialmente para uso de lazer. Na calçada interna, o padrão de Copacabana não se repete. Não há prática de passeio. Poucos hotéis (alguns fecharam recentemente), poucos restaurantes, uma casa de cultura que não interage com a praia. A Feira Hippie da Praça General Osório (desde 1975) e o movimento na Praça Nossa Senhora da Paz não envolvem a orla.
O metrô chegou na Estação General Osório em 2009 vindo da Tijuca (Linha 1) e em 2016, para as Olimpíadas, vindo da Barra (Linha 4), incluindo as três outras estações dos bairros: Nossa Senhora da Paz, Antero de Quental e Jardim de Alah.
O calçadão, com certa presença de turistas, tem grande uso para caminhadas dos moradores. Há também comércio varejista, esculturas de areia entre outras atrações.
Na calçada interna não se repete o padrão adotado em Copacabana. Não há prática de passeio. Poucos hotéis (alguns fecharam recentemente), poucos restaurantes, uma casa de cultura que não interage com a praia. A Feira Hippie da Praça General Osório (desde 1975) e o movimento na Praça Nossa Senhora da Paz não envolvem a orla.
A atração de gastronomia é forte, mas ocorre nas ruas transversais e internas dos bairros, inclusive na Lagoa Rodrigo de Freitas. A reforma prevista no Jardim de Alah (anunciada em agosto de 2023) propõe reforçar esta tendência.
Figura 9: Imagem de Satélite da Praia de São Conrado.
Fonte: Google Earth (online)
A praia de São Conrado é caracterizada pela areia clara, fofa e pelas fortes ondas que são o maior atrativo para os surfistas da região, mas que, infelizmente, costuma estar imprópria para o banho devido à poluição. A extensa faixa de areia, no entanto, favorece a prática de esporte.
O diálogo do calçadão com a outra margem da avenida é anulado, ou muito fragilizado, pela morfologia que distingue o bairro naquele trecho. Quarteirões parcelados em grandes lotes ocupados por prédios de gabarito alto, residenciais, todos separados do entorno por cercas altas, portões eletrônicos e câmeras de vigilância. Igualmente cercada e vigiada, a grande gleba do clube de golfe corresponde à metade da extensão da orla. A relação com a praia resume-se, aparentemente, à contemplação.
O Hotel Nacional, dentre os poucos pontos atrativos do bairro, permanece com destaque, o qual recentemente reabriu suas atividades. Projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, conta ainda com jardins do paisagista Burle Marx, sua arquitetura constitui ponto turístico de visitação quase obrigatória na cidade. Todavia, não apresenta e nem incentiva ligação com a praia, não estabelece, portanto, vínculos com o calçadão, a ciclovia e seus quiosques.
A população do bairro de São Conrado apresenta um perfil social realmente dispar em relação à elite dos condomínios da praia e às comunidades, pobres, da Rocinha e do Vidigal, ao contrário de outros bairros dos demais trechos estudados. Convivência é vigiada.
As distâncias entre os quiosques variam. Na vizinhança imediata da área de aterrissagem de asa delta e parapente, quatro quiosques próximos definem um ‘point’ de oferta de lanches aos esportistas e visitantes. Ao longo da praia, todavia, o espaçamento entre eles aumenta muito e é complementado quando se mostra necessário por ambulantes.
O acidente com a ciclovia denominada Tim Maia, da Av. Niemeyer, interrompe o percurso. É disruptivo também no plano do imaginário, é uma cicatriz com repercussões nas demais dimensões do estudo.
O Hotel Intercontinental, fechado desde 2020 e cercado de tapumes, anuncia que será transformado em residências, mas, no momento, empobrece ainda mais a relação desta margem com a praia.
Este trecho da orla tem sua energia de atração no movimento de asa-delta e parapente localizados ao fim do trajeto.
Intervenções urbanas de larga escala que removem práticas socioculturais de apropriação ambiental para o lazer praiano, incutidas no cotidiano de tantas pessoas, e as substitui por novos contributos ainda que voltados ao mesmo propósito - a fruição - enfrentam oposições, geram contendas. Quando incomodam pessoalmente um jornalista formador da opinião pública, mais especificamente Millôr Fernandes, a contenda vira guerra retratada nos jornais da época, ilustrada nas figuras 10 e 11.
Atributos do projeto que foram inicialmente condenados com muito vigor foram posteriormente apropriados e expandidos. A polêmica na imprensa dos anos 1990, com aquele ritmo e duração dos embates, aumentou a visibilidade e alimentou a atratividade do projeto.
Figuras 10 e 11: Duas charges do Millôr Fernandes publicadas no Jornal do Brasil.
Fonte: Jornal do Brasil
Embora o Projeto Rio Orla tenha seguido o rito de apresentação pública para diversos setores da sociedade, principalmente as associações de moradores dos bairros junto à orla marítima e usuários diversos, instaurou-se uma grande polêmica na mídia.
As obras na Zona Sul incomodavam bastante a população. Iniciadas no verão de 1991 atingiram o verão de 1992 em pleno vapor, com remanejamento de estacionamento, obras no calçadão (água e esgoto para os quiosques) e na frente do calçadão (ciclovias).
O jornalista Millôr Fernandes, ilustre morador de Ipanema e crítico do projeto, publicou inúmeras charges na sua coluna no Jornal do Brasil. Chico Caruso o acompanhou. A ciclovia, a retirada das árvores, o transtorno e o próprio prefeito foram os temas preferidos.
Alfredo Sirkis, na época vereador do Partido Verde, foi o principal defensor da ciclovia, comentava sempre em conversas no IPLANRIO que o Millôr atacava as pessoas assim, inclusive a si próprio, como traidor ambientalista. Ficava quase que com raiva de você mesmo de tão bom que era o artigo, mas a crítica não tinha nem pé nem cabeça.
A repercussão destas charges foi muito grande por irem ao encontro da opinião de muitos leitores, pela qualidade dos cartoons, pela fama dos autores e pela importância dos jornais naquela época. Porém, consideramos que cabe refletir sobre a própria essência do humor na vida humana.
“Uma pessoa como sujeito ativo de percepção no processo de relações interpessoais é propensa a emoções positivas. Uma vez que se fala de tal forma de comunicação como o humor, que é certo fenômeno da consciência social e individual, é preciso admitir sua orientação humanística” (Lazebna, 2022, p.2).
O autor complementa considerando que o humor ajuda a obter alívio do estresse, “bem como pode resolver algumas situações complexas da vida no período da globalização” (Lazebna, 2022). O humor nos permitiria combater a depressão, a dúvida, o estresse, bem como resistir à pressão da competitividade exacerbada.
Figura 12: Quadro de fotografias etiquetadas no Leme e Copacabana no Instagram.
Fonte: Instagram (online)
As imagens que responderam ao procedimento de análise, por meio do Instagram, figura 12, destacam diversos usos transitórios principalmente articulados pela extensão do calçadão, desde a Pedra do Leme ao Forte de Copacabana. Os quiosques, a ciclovia e a dimensão ambiental apresentaram-se mais frequentemente estruturadas a partir desse passeio. Sendo uma das principais bordas do bairro, o calçadão agrega uma série de atividades nesses registros, podendo ser entendido como importante recurso de conectividade, mas também de convívio sócio cultural. Privilegiada pela visibilidade popular e turismo, a orla abriga uma importante diversidade de eventos como shows, corridas, manifestações políticas, entre outros, que alimentam o imaginário e a atratividade desse destino e deixam pegadas nas diferentes escalas de agentes econômicos, usos em diferentes horas do dia e representações identitárias, reveladas nessas publicações online.
Figura 13: Quadro de fotografias etiquetadas em Ipanema e Leblon no Instagram.
Fonte: Instagram (online)
As capturas encontradas no trecho do Arpoador, Ipanema e Leblon, figura 13, apresentam a dimensão ambiental como um notável destaque na construção dessas imagens. O monumento natural do Morro dos Dois Irmãos, por exemplo, é um ponto focal recorrente em diferentes contextos no local. O convívio social na localidade tem fortes representações nas práticas esportivas, contemplação da paisagem natural e atividades nos quiosques. Estes últimos, por sua vez, são registrados em diferentes modelos e mobiliários urbanos. A ciclovia constrói uma sequência de experiências desde o trecho vizinho vindo de Copacabana, reforçada nesses registros pelos eventos de fechamento das faixas de rolamento adjacentes aos domingos e feriados, para uso de ciclistas e pedestres.
Figura 14: Quadro de fotografias etiquetadas em São Conrado no Instagram.
Fonte: Instagram (online)
O grupo de imagens de São Conrado, figura 14, ilustra uma relação própria de conectividade em comparação aos trechos anteriores. Os olhares registrados nas fotografias enfatizam, sob diferentes aspectos, as relações de dentro e fora. Assim, as práticas esportivas ligadas à dimensão ambiental, os eventos musicais nos quiosques, a visão da praia a partir de condomínios e da Rocinha, e a apreensão do calçadão e ciclovia a partir da visão de motos e carros, constroem um campo de imagem sem clara integração de todos os elementos debatidos. As visadas da ciclovia e do calçadão também permitem destacar as bordas cegas que emolduram a extensão da praia em sua maior parte, como um limite para fruição social e trocas com a vizinhança. Entretanto, é possível notar que há um nível de manutenção de sua atratividade e apropriação por grupos que adotam o local como de preferência.
O dinamismo dessa tessitura de caminhos é estimulado, desde a sua criação, por pontos de atração em diferentes dimensões qualitativas abrangendo a conectividade, o comércio para diferentes níveis de renda e de consumo, as práticas socioculturais de acolhimento e rejeição, submissas ou transgressoras às normativas predominantes de governo. São também desafiadas, na sua materialidade, por novas percepções, apropriações virtuais, aprovações e condenações ao abrigo de outros tempos, outros ritmos, outras regras do que se parece com autogestão.
A visibilidade excepcional de um dos três trechos selecionados, a orla de Copacabana, bem como os mitos a estes associados, repercutem no imaginário do observador (Bachelard, 1989; Lynch, 1960). Vestígios da memória alimentada por diferentes conteúdos influem na escolha dos percursos praticados, identificam preconcepções de acolhimento, delineiam a percepção do conjunto a partir de elementos percebidos como recorrentes, focando atributos da imagem e significados associados.
O que se entende como processo de formação do imaginário, desde a época em que Lynch (1960) e Bachelard (1989) publicaram suas pesquisas e reflexões, passou e ainda passa por importantes transformações. Ganhou novos contribuidores e contributos, novos ritmos de configuração, uma aceleração e uma transitoriedade nunca antes experimentada. Registros de instantes de memória disponibilizados à multidão no espaço virtual das redes sociais afetam o processo de formação do imaginário. Realçam a componente tempo e simultaneamente a minimizam, omitem e subtraem sua duração e seu significado (Han, 2021) reduzindo a relevância da experiência.
O experimento de observar a representação virtual dos lugares analisados sugere superfícies no processo que entremeiam as noções de cidade que produz imagens e imagens que produzem cidades.
O exercício de coletar e observar as mídias publicadas no Instagram, produzidas e relacionadas com os trechos analisados, possibilitou uma reflexão sobre um mosaico imagético feito por diferentes autores. Ao elencar um alvo para seus registros, tais usuários apontam desejos próprios de sua representação, entretanto, em conjunto, podem abarcar uma narrativa coletiva em uma determinada janela de instantes. Ao analisar as publicações que responderam aos critérios de busca, é válido ressaltar a profundidade de sua composição, isto é, não apenas o primeiro plano adotado como assunto da fotografia, mas também seus contextos e demais atividades ao fundo articuladas naquele momento.
Assim sendo, as tomadas da paisagem podem revelar fragmentos de tempo quando diversos agentes constroem a vivência coletiva desses locais através do cotidiano. Portanto, tais transitoriedades sugerem amostras de como tais vivências decantam-se em uma leitura coletiva dessas paisagens.
Todavia, ainda que privilegiando percursos ‘instagramáticos’, a visita aos trechos da orla se dá no espaço físico do calçadão que, por sua vez, tece relações materiais com outros usos, funcionalidades mistas, alocados na vizinhança próxima, como as lojas e hotéis situados ao longo da beira mar, e na vizinhança não tão próxima, como as estações de metrô do bairro nos dois trechos da orla, do Leme ao Leblon. As vivências ainda que alteradas na formação das memórias de referência, interpenetradas por outros planos, fazem caminhos.
O espaço público, assim como as variadas formas de apropriação social, cultural e econômica que acolhe, está em constante movimento. E quanto maior sua atratividade, maiores serão as adaptações aos costumes e vontades da população, assim também maiores serão as pressões políticas, econômicas e digitais influenciando a sua gestão.
Indubitavelmente é o caso da Orla. O Projeto Rio Orla foi uma intervenção ousada. Pegou bem, foi acolhido pela população.
A ciclovia com suas características (largura, localização) e de operação (sinalização), permaneceu a mesma. A alteração foi profunda nos hábitos da população. A tendência do uso de bicicleta, praticada em nível global, ainda não estava difundida na cidade. Virou moda em plena zona sul! Foi facilitada pela malha cicloviária ofertada, apoiada na beleza da paisagem a contemplar. Aqui no Rio, o urbanismo foi na frente. A proposta civilizatória que a acompanhava, contudo, não vingou tanto quanto esperado.
O Projeto Rio Orla procurou deixar simples a operação dos quiosques, procurou regular a operação das barracas de comida na areia, propôs que os eventos esportivos e shows fossem realizados fora da areia. Isso não funcionou. Os trailistas, agrupados numa concessionária, fizeram crescer o serviço, com mesas, cadeiras, músicas e luzes. Os eventos na areia cresceram bastante. A pressão econômica, incluindo a procura de trabalho, se mantém promotora destas mudanças.
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Sobre os Autores
Thereza Christina Couto Carvalho é Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, PPGAU, da UFF, desde 2003 coordena grupo de pesquisa e projeto sobre espaço público, ordenamento territorial RCORT/UFF, professora nos cursos de graduação e pós-graduação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB, de 1990 a 2006; foi Diretora do Centro Integrado de Ordenamento Territorial, CIORD, convênio PR/UnB, de 1995 a 2001. Dentre as publicações e produtos técnicos que coordenou e dos quais participou como coautora destaca: “Pequeno Glossário Ilustrado de Urbanismo”, Rio Books, 2021; coordenadora técnica do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Municipal de Niterói, de 2019, PMN/FGV/ UFF; “Efeitos da Arquitetura: os impactos da urbanização contemporânea no Brasil” (orgs) Netto,V., Saboya R., Vargas, J, Carvalho T.
Alberto Strozenberg é estatístico e engenheiro, fez pós-graduação em pesquisa operacional na COPPE-UFRJ. Foi Professor fundador do IBMEC (1970). Trabalhou na Companhia do Metropolitano, na diretoria de planejamento e na implantação do Metrô Rio. Foi diretor técnico do Instituto de Planejamento (IPLANRIO) atual IPP. Foi diretor presidente do Centro de Informações e Dados do Rio de Janeiro (CIDE) e subsecretário de Transporte e de Planejamento.
Fábio Carneiro Velasco é Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF). Foi bolsista de iniciação científica - PIBIC, no projeto de pesquisa "DNA da Paisagem Fluminense - uma contribuição ao estudo dos espaços públicos na formação da cidade com ênfase na praça como articuladora de centralidades", de 2015 a 2017. Coautor do livro Pequeno Glossário Ilustrado de urbanismo, publicado pela Rio Books em 2021.
Contribuições dos Autores
Conceituação, T.C.C.C., A.S. e F.C.V.; metodologia, T.C.C.C.; investigação, T.C.C.C., A.S. e F.C.V.; recursos, T.C.C.C., A.S. e F.C.V.; redação—revisão e edição T.C.C.C., A.S. e F.C.V. Todos os autores leram e concordaram com a versão publicada do manuscrito.
Financiamento
Esta pesquisa contou com recursos da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Conflitos de Interesse
Os autores declaram não haver conflitos de interesse.
Sobre a Coleção Estudos Cariocas
A Coleção Estudos Cariocas (ISSN 1984-7203) é uma publicação de estudos e pesquisas sobre o Município do Rio de Janeiro, vinculada ao Instituto Pereira Passos (IPP) da Secretaria Municipal da Casa Civil da Prefeitura do Rio de Janeiro.
Seu objetivo é divulgar a produção técnico-científica sobre temas relacionados à cidade do Rio de Janeiro, bem como sua vinculação metropolitana e em contextos regionais, nacionais e internacionais. Está aberta a quaisquer pesquisadores (sejam eles servidores municipais ou não), abrangendo áreas diversas - sempre que atendam, parcial ou integralmente, o recorte espacial da cidade do Rio de Janeiro.
Os artigos também necessitam guardar coerência com os objetivos do Instituto, a saber:
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[1] A conceituação do termo ‘capital genético’ emerge da pesquisa de pós-doutorado de Thereza Carvalho (2008/9), “O DNA da paisagem - mutações e persistências no capital genético dos espaços públicos”, que teve como um dos estudos de caso um trecho da cidade de Lisboa, Portugal. Os resultados da referida pesquisa configuraram um procedimento de leitura do espaço urbano, tratando do processo de evolução permanente da cidade, que ora se expande, ora se contrai, ora se recria. Os tecidos urbanos estudados pela autora sempre comportam elementos morfológicos de períodos anteriores, cujo tempo sedimentou em traçados, estruturas urbanas ou construções, e se encontram integrados na vivência diária dos seus habitantes. Essas vivências imprimem signos, deixam vestígios que ora se justapõem, ora são sobrepostos e ocultos, ora são valorizados e mantidos, ora são abandonados. Juntos formam o “capital genético da paisagem urbana”.