Volume

13

Edição

1

*Autor(a) correspondente ivokory@gmail.com

Submetido em 8 abr 2025

Aceito em 29 abr 2025

Publicado em 16 mai 2025

Como Citar?

KORYTOWSKI, I.. O mistério do oratório do alto do Morro da Providência, no Rio de Janeiro. Coleção Estudos Cariocas, v. 13, n. 1, 2025.
DOI: 10.71256/19847203.13.1.139.2025

O artigo foi originalmente

submetido em PORTUGUÊS.

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precisa do tema abordado, recomenda-se que os leitores consultem o artigo em seu idioma original.

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O mistério do oratório do alto do Morro da Providência, no Rio de Janeiro 

The mystery of the oratory at the top of Morro da Providência, in Rio de Janeiro

El misterio del oratorio en la cima del Morro da Providência, en Río de Janeiro

Ivo Korytowski1

1Pesquisador independente, ORCID 0009-0000-5201-2052, ivokory@gmail.com

Resumo

O artigo procura desvendar o mistério do oratório do alto do Morro da Providência, na Zona Portuária do Rio de Janeiro, supostamente erguido para comemorar a chegada do século XX, mas que já aparece em fotografias e gravuras de épocas anteriores. Para isso, retrocederá à invasão do Rio de Janeiro de 1711 e à subsequente tentativa de fortificar a cidade, buscando evidências de que o referido oratório não foi construído do zero, mas utilizou-se de uma antiga atalaia de observação preexistente naquele local.

Palavras-chave:         Morro da Providência, invasão francesa de 1711, fortificação do Rio de Janeiro.

Abstract

The article seeks to unravel the mystery of the oratory at the top of Morro da Providência, in the waterfront of Rio de Janeiro, supposedly built to celebrate the arrival of the 20th century, but which already appears in photographs and engravings from previous times. To do this, it will go back to the invasion of Rio de Janeiro in 1711 and the subsequent attempt to fortify the city, looking for evidence that the aforementioned oratory was not built from scratch, but took advantage of an old observation tower that pre-existed in that location.

Keywords:         Morro da Providência, French invasion in 1711, fortification of Rio de Janeiro.

Resumen

El artículo busca desentrañar el misterio del oratorio en lo alto del Morro da Providência, en la Zona Portuaria de Río de Janeiro, supuestamente construido para celebrar la llegada del siglo XX, pero que ya aparece en fotografías y grabados de épocas anteriores. Para ello, se remontará a la invasión de Río de Janeiro en 1711 y al posterior intento de fortificar la ciudad, buscando evidencia de que el mencionado oratorio no fué construído desde cero, sino que aprovechó una antigua torre de observación que preexistía en esse lugar.

Palabras clave:         Morro da Providencia, invasión francesa en 1711, fortificación de Río de Janeiro.

  1. Introdução

No alto do morro da Providência ergue-se um velho oratório que, reza a lenda urbana, teria sido erguido pelos soldados retornados da Guerra de Canudos que “ocuparam” o morro e criaram a “primeira” favela carioca. A própria designação “favela” foi trazida de Canudos, em que nomeava uma planta e um morro, como vemos em Os Sertões. Sobre a planta, escreve Euclides da Cunha:

As favelas, anônimas ainda na ciência – ignoradas dos sábios, conhecidas demais pelos tabaréus – talvez um futuro gênero cauterium das leguminosas, têm, nas folhas de células alongadas em vilosidades, notáveis aprestos de condensação, absorção e defesa. (Cunha, 1902, p. 18)

Sobre o morro, escreve o autor:

Todas traçam, afinal, elíptica curva fechada ao sul por um morro, o da Favela, em torno de larga planura ondeante onde se erigia o arraial de Canudos [...] Galgava o topo da Favela. Volvia em volta o olhar, para abranger de um lance o conjunto da terra. [...] Do topo da Favela, se a prumo dardejava o Sol e a atmosfera estagnada imobilizava a natureza em torno, atentando-se para os descampados, ao longe, não se distinguia o solo. (Cunha, 1902, p. 11)

Embora a densidade populacional aumentasse significativamente com a ocupação dos soldados, o Morro da Providência não era de todo despovoado antes da vinda deles. Por exemplo, o Correio Mercantil de 21 de junho de 1856 publica na primeira página:

Pedem-nos que chamemos a atenção da autoridade para a falta de asseio que há na rua do Silva Manoel [atual André Cavalcanti] e para o Morro da Providência, onde mora muita gente, e onde não há nem iluminação, nem água, nem asseio, nem polícia. (NOTÍCIAS…, 1856, p. 1)

E se a ocupação do Morro da Providência pelos soldados gerou a primeira grande favela, no sentido atual do termo (embora, mais recentemente, se dê preferência ao termo “comunidade”), tecnicamente já existia uma “favelinha” no Morro de Santo Antônio no final do século XIX. Quem conta isso é Luís Edmundo em O Rio de Janeiro do meu Tempo:

Em Santo Antônio, outeiro pobre, apesar da situação em que se encerrava na cidade, as moradas são, em grande maioria, feitas de improviso, de sobras e de farrapos, andrajosas e tristes como os seus moradores.

Por elas vivem mendigos, os autênticos, quando não se vão instalar pelas hospedarias da Rua da Misericórdia, capoeiras, malandros, vagabundos de toda sorte: mulheres sem arrimo de parentes, velhos dos que já não podem mais trabalhar, crianças, enjeitados em meio a gente válida, porém, o que é pior, sem ajuda de trabalho, verdadeiros desprezados da sorte, esquecidos de Deus...

O número desses últimos enxameia a encosta por onde se vai subindo, uns, caídos de borco sobre a relva, outros, recostados ao portal de sórdidas moradas, o coto do cigarro à flor do lábio, o olho melancólico perdido na glória sorridente da paisagem – homens que não têm o que fazer e que trabalho não encontram. (Edmundo, 2003, p. 147)

E o “Oratório do Morro da Providência” que, segundo o Guia do Patrimônio Cultural Carioca: Bens Tombados publicado pela Prefeitura do Rio de Janeiro em 2014, foi “erigido em 1901” (grifo nosso) e “revela tipografia estilística semelhante às torres sineiras das edificações religiosas jesuíticas”, já aparece em uma fotografia de 1881 (a Guerra de Canudos começaria quinze anos depois) e – pasmem! – em gravuras de 1847 e cerca de 1860.

Figura 1: Foto 29 do álbum Coleção de 44 vistas fotográficas da Estrada de Ferro D. Pedro 2 de 1881.

Fonte: Biblioteca Nacional Digital.

Figura 2: Alfred Martinet, “Cemitério dos Ingleses”, gravura 7 de O Brasil pitoresco, histórico e monumental. Rio de Janeiro, Typ. Universal de Laemmert, 1847.

Fonte: Biblioteca Nacional Digital.

Figura 3: Sebastien Auguste Sisson, “Cemitério dos Ingleses”, cromolitografia 7 do Álbum do Rio de Janeiro Moderno. Rio de Janeiro: S. A. Sisson, cerca de 1860.

Fonte: Biblioteca Nacional Digital.

Para tentarmos resolver o mistério do oratório “de 1901”, que faz sua aparição fantasmagórica em imagens de décadas antes, vamos primeiro percorrer a história do Morro da Providência.  Em seguida, abordaremos a fortificação da cidade após a invasão de Duguay-Trouin em 1711, e finalmente, com base nessas informações, sustentaremos a tese de que o oratório foi originalmente uma atalaia de observação já abandonada.

  1. Esboço de uma História do Morro da Providência

O historiador que pretenda perscrutar a história do Morro da Providência e desvendar o mistério do oratório precisa estar familiarizado com suas diversas denominações em diferentes mapas de diferentes épocas.

Em alguns mapas antigos (como o abaixo), o Morro da Providência não se distingue do Morro do Livramento, e de fato, geograficamente falando, a Providência não é um morro separado, e sim um “cocuruto” na ponta sudoeste do Morro do Livramento. Tanto é que a Ladeira do Barroso, que sobe pela vertente sul do Morro do Livramento, depois prossegue, por uma escadaria, Morro da Providência acima.

Figura 4: Detalhe de “A Capital do Brasil”, planta do Rio de Janeiro de 1831 onde o Morro da Providência é um prolongamento do Morro do Livramento.

Fonte: Biblioteca Nacional Digital.

Figura 5: Escadaria na Ladeira do Barroso de acesso ao Morro da Providência em 2016, na época pintada de rosa e com a letra da canção Aluga-se (“Nós não vamos pagar nada...”) de Raul Seixas.

Fonte: Acervo Pessoal.

Na “Planta da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, levantada por ordem de S. A. R. Príncipe Regente Nosso Senhor no ano de 1808”, publicada pela Impressão Régia em 1812, o Morro da Providência é chamado de Morro de Paulo Caieiro. Uma variante deste nome encontrada num mapa de 1796 é Monte de Paulo Caeira e outra de 1812 é Monte de Paulo da Caeira (grifo nosso; este nome voltará a ser mencionado adiante). A semelhança deste nome com Morro de Paulo Cairu, que já designou o atual Morro do Pinto, pode causar confusão.

Figura 6: Detalhe da “Planta da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, levantada por ordem de S. A. R. Príncipe Regente Nosso Senhor no ano de 1808”, onde o Morro da Providência é chamado de Morro de Paulo Caieiro. Observe que o mapa assinala a existência de uma construção (o quadradinho abaixo do nome do morro) à qual retornaremos adiante.

Fonte: Biblioteca Nacional Digital.

A ponta ao sul do Morro da Providência, depois “comida” pela pedreira, foi chamada no século XIX de Morro da Formiga. Durante um período na virada do século XIX para o XX, o Morro da Providência foi chamado popularmente de Morro da Favela.

Figura 7: Detalhe da “Planta da Cidade do Rio de Janeiro Organizada no Arquivo Militar” de 1858, onde a vertente sul do Morro da Providência (à esquerda no mapa) é chamada de Morro da Formiga.

Fonte: Biblioteca Nacional Digital.

2.1   Invasões francesas da década de 1710

O Morro da Providência vai para a história com a invasão francesa de 1711.  A invasão teve por pretexto vingar a derrota de Duclerc[1] e libertar os prisioneiros franceses da tentativa de invasão do ano anterior, embora uma motivação secundária fosse apoderar-se das riquezas do Rio de Janeiro, definida por Louis Chancel de Lagrange[2] como:  

Uma cidade brasileira assaz opulenta [...], uma das mais ricas do mundo [...], quer pela vizinhança das minas de ouro, quer pelas frotas portuguesas de comércio que, anualmente, lhe trazem as mais valiosas mercadorias europeias. Ainda mais, as embarcações inglesas e holandesas, de torna-viagem [retorno] das Índias Orientais, nela fazem ponto obrigatório de parada, descarregando suas preciosas cargas do oriente. (Lagrange, 1967, pp. 51, 52 e 56)

A entrada da Baía da Guanabara era relativamente estreita, tendo por

Largura, aproximadamente, o alcance de um tiro de peça, com várias pedras ao centro, que tornam, por isso, bastante difícil seu acesso, constituído por dois canais, defendidos por duas possantes fortalezas. (Lagrange, 1967, p.  56)

Do lado carioca, a fortaleza de São João, foi armada com 18 canhões; do lado da Praia Grande, atual Niterói, a fortaleza de Santa Cruz foi assentada em um promontório com dupla fortificação talhada na rocha, considerada inexpugnável pelos portugueses e armada com “46 bocas de fogo” (Lagrange, 1967, p.  56). No ano anterior, Duclerc, impedido pelos tiros dos canhões das fortalezas de penetrar pela baía, tentou um lance surpreendente: desembarcou na enseada de Guaratiba, na costa do Atlântico, bem longe do centro da cidade, atravessou o então “sertão” carioca e invadiu a cidade por terra, mas mesmo assim foi derrotado pelos soldados e população que resistiram. Já Duguay-Troin foi ousado e decidiu forçar a entrada na baía, aproveitando-se de uma espessa cerração e do vento leste favorável, de modo que “só tardiamente conseguiram os inimigos se aperceber de nossa presença” (Lagrange, 1967, p. 54). Logrou atacar e ocupar a Ilha das Cobras, uma posição estratégica, e de lá, na madrugada do dia seguinte, seguiu a ideia do seu antecessor de desembarcar onde menos se esperava, a saber, na zona de trapiches, enseadas (então chamadas de “sacos”), ilhas, morros, parcamente povoada, na costa norte da cidade (ver alto do mapa abaixo), que no início do século XX viria a ser totalmente retificada e desfigurada para a construção do moderno cais do porto.

Figura 8: “A Capital do Brasil”, planta do Rio de Janeiro de 1831.

Fonte: Biblioteca Nacional Digital.

Onde foi exatamente que Duguay-Trouin desembarcou? Lagrange conta:

Às 8 horas da manhã, encontrando-se todos os escaleres e mais embarcações miúdas, devidamente guarnecidas de combatentes, junto aos três navios assinalados, para que fosse o assalto efetuado em conjunto, vale dizer, com todas as forças de desembarque, aproximamo-nos de uma enseada tão cheia de pedras que, se não podendo abordar a terra, foram nossos soldados obrigados a cair n'água, indo com ela pela cintura até a praia, onde já os aguardavam os oficiais, que logo os dispunham em ordem de combate, à proporção que chegavam. Não encontramos, também aí, a menor resistência por parte do inimigo. (Lagrange, 1967, p. 64)

Mas exatamente em qual enseada desembarcaram os franceses? O mapa “Prise de Rio-Janeyro 1711” (“Tomada do Rio de Janeiro 1711”) mostra que o desembarque ocorreu na Praia do Saco do Alferes, cujo traçado correspondia à atual Rua Santo Cristo, no bairro de mesmo nome. Os nomes da praia e enseada (saco) se devem ao Alferes Diogo de Pina que lá habitava.

Figura 9: Local de desembarque das tropas de Duguay-Trouin no Saco do Alferes (seta). Nos morros em frente, com quadradinhos no topo, os franceses estabeleceram o Premier Campement (Primeiro Acampamento). São eles os atuais morros do Pinto (letra A) e da Providência (letra B). Vemos também o Morro do Livramento (letra C), que por um erro do mapa está afastado do Morro da Providência, e o Morro da Conceição (letra D), local do palácio episcopal, tomado sete dias depois, onde estabeleceram o Second Camp (Segundo Acampamento).

Fonte: Detalhe do mapa “Prise de Rio-Janeyro 1711” (“Tomada do Rio de Janeiro 1711”)

Após o desembarque naquela enseada, os franceses ocuparam os morros em frente, para de lá planejar a descida e ocupação da área mais habitada. Conta Duguay-Trouin em suas memórias:

Desembarcadas as nossas tropas e munições, mandei o Sr. cavalheiro de Goyon, e o Sr. cavalheiro de Courserac ambos avançar à frente das suas brigadas, para apossarem-se das duas colinas, donde descortinava-se toda a campina e parte dos movimentos executados na cidade. [...] as nossas tropas acamparam na seguinte ordem. A brigada de Goyon ocupou a colina, que olhava para a cidade; a de Courserac estabeleceu-se no monte oposto; e eu coloquei-me no meio com a brigada do centro. (Duguay-Trouin, 1884, p. 70-71)

Quais morros teriam sido ocupados pelos franceses logo após o desembarque? Examinando o detalhe do mapa “Prise de Rio-Janeyro 1711” acima, bem como o detalhe do mapa de Jacques Funck de 1768 das fortalezas do Rio de Janeiro abaixo, vemos que foram: 1) o atual Morro do Pinto (letra A), que já se chamou Monte de Santa Teresa, devido à capela com esse nome, e depois Morro do Nheco – o atual morro de Santa Teresa chamava-se então Morro do Desterro; 2) o Morro da Providência (letra B). Corrobora esta tese o fato de que do alto de ambos os morros descortina-se uma vasta vista da cidade, tanto para o núcleo urbano ao sul como para a baía ao norte e, no caso do Morro do Pinto, o “sertão” a oeste.

Figura 10: Detalhe mostrando os dois morros ocupados pelos invasores franceses após o desembarque no Saco do Alferes.

Fonte: Jacques Funck, “Relation generale de toutes les Forteresses a Rio de Janeiro”, 1768, Biblioteca Nacional Digital.

Figura 11: Marc Ferrez, “Vista do centro da cidade a partir do Morro da Providência”, cerca de 1890.

Fonte: Brasiliana Fotográfica

Aqui temos um problema de nomenclatura, algo comum quando estudamos a história da urbe, já que os nomes dos logradouros sofreram modificações no decorrer do tempo, sem falar nos nomes populares, não registrados nos mapas, como Morro da Favela para designar o Morro da Providência. Lemos nas Efemérides Brasileiras do Barão do Rio Branco que Duguay-Trouin “ocupou sem resistência as alturas de São Diogo, Providência e Livramento” e em outras obras também lemos que o invasor francês ocupou o Morro de São Diogo. Aqui acreditamos que se trate não do verdadeiro Morro de São Diogo, em frente à Estação Leopoldina, que desde os tempos coloniais abrigou uma pedreira e hoje abriga uma pequena favela, e sim o atual Morro do Pinto. Essa crença é corroborada pelo mapa de 1850 abaixo onde “Morros de S. Diogo” designam o Morro de São Diogo propriamente dito e uma parte do atual Morro do Pinto. Ademais, o mapa “Prise de Rio-Janeyro 1711” acima mostrou claramente que os franceses ocuparam os dois morros em frente ao Saco do Alferes: do Pinto e da Providência.

Figura 12: “Plano que compreende a planta da Corte do Rio de Janeiro e os seus Subúrbios” de 1850 (detalhe).

Fonte: Biblioteca Nacional Digital.

2.2   O Morro da Providência nos séculos XIX e XX

Duguay-Troin permaneceu dois meses no Rio de Janeiro e só se retirou depois de extorquir do governador um elevado resgate. Ao pé do Morro da Providência foi criado em 1811 o primeiro cemitério a céu aberto da cidade, o Cemitério dos Ingleses. No decorrer do século XIX, o morro (em especial suas partes mais baixas) foi sendo ocupado por pessoas de baixa renda ou mesmo por malfeitores. A leitura de jornais da época dá a impressão de que era um lugar desprovido de infraestrutura, perigoso, evitado pela polícia. Por exemplo, no Correio Mercantil de 30 de abril de 1848 encontramos este retrato nada lisonjeiro do morro:

Tendo-se virado a atenção pública para o museu da rua da Providência, ninguém se lembra de olhar para o morro da Providência, ou antes da formiga [nome que tinha na época a vertente sul do morro], porque ali não há providência de qualidade alguma, nem mesmo de luz, porque a iluminação é coisa que inda lá não chegou, patrulhas até ignoram a existência do morro, pedestres inda menos; entretanto em relação à pouca extensão já há muito povoado, e os malfeitores e facinorosos têm ali um excelente asilo para se livrarem das pesquisas da polícia. (Publicações [...], 1848, p. 2)

Em 19 de julho de 1857, o Correio Mercantil noticia, na página 2, em nota assinada por “O morador agradecido”, a chegada da iluminação pública no Morro: “O morro da Providência não tinha lampiões, e pelo desvelo das autoridades competentes foram ultimamente ali postos para conforto e segurança de seus moradores.”

Segundo uma nota na primeira página do Diário do Rio de Janeiro de 13 de agosto de 1868 intitulada “Morro da Providência”, o morro possuía “mais de 100 casas; nelas residem para cima de 1.000 pessoas, que ali procuram habitação, já pela modicidade dos aluguéis dos prédios [casas], já pelo ar saudável que ali se goza”, derrubando o mito de que antes da ocupação dos soldados de Canudos o morro era inabitado.

Em 1896, quando a Guerra de Canudos ainda se desenrolava, uns poucos casebres já se erguiam no alto do morro, como mostra esta matéria policial intitulada “Homicidio” de O Paiz de 27 de janeiro:

Mais uma cena de ira feroz, de cólera bestial, ensanguentou ontem o já bastante rubro mês de janeiro de 1896. Seis horas, tarde serena, sol poente, um sol morno que durante o dia não saíra de trás do espesso cortinado de nuvens; e o alto do morro da Providência, coberto de vegetação, vazio de casas, que aparecem somente aqui e ali, mal cobertas de zinco, a servir de teatro para um crime da mais bárbara e estúpida natureza. (Homicidio, 1896, p.1)

O número 20B da revista Bazar Volante de 1866 sugere, na página 7, que se mude o nome do Morro da Providência para “monte do inferno, cocuruto de Satanás, purgatório da vida, serra do degredo”.

Numa palavra chamem-lhe o que quiserem menos morro da Providência!... Não queiram que o pobre povo que ainda conserva um resto de crença e um bocadinho de fé tenha a desgraça de as perder, tomando como dons da Providência os flagelos que sofre no seu morro! (Nihil, 1866, p. 7)

Enquanto o morro do Livramento, em cuja chácara da família Barroso a mãe de Machado de Assis era agregada, já contou com uma capela no início do século XIX, como atesta o Padre Perereca na Introdução às Memórias para Servir à História do Reino do Brasil[3], somente no início do século XX o Morro da Providência ganhou dois locais de culto: a Igreja de Nossa Senhora da Penha e o “Oratório” de que estamos tratando (Perereca, 2013).

O papel religioso do Oratório não se restringiu à inauguração do novo século, mas estendeu-se por alguns anos subsequentes. Por exemplo, o Correio da Manhã de 20 de setembro de 1902 anuncia, à página 4:

GRANDES FESTAS [...] em louvor a Nossa Senhora da Penha. Às 11 horas da manhã missa rezada por devoção pelo cônego Curio, vigário da Paróquia do Senhor Santo Cristo. Às 5 horas sairão em procissão os andores de Nossa Senhora da Penha, S. Benedito dos Navegantes e do Senhor Bom Jesus do Monte que em visitação ao Senhor Crucificado Bom Jesus do Mirante, rodeiam a sua ermida ereta no alto do Morro da Providência [ou seja, o Oratório]. (Grandes [...], 1902, p. 4)

O Jornal do Brasil de 24 de setembro de 1911 anuncia uma procissão “em homenagem ao Senhor Bom Jesus do Mirante, dando voltas ao monumento Século XX” (Irmandade [...], 1911, p. 14). A partir daí, os anúncios de festas religiosas naquele local desaparecem do Jornal do Brasil, reaparecendo pela última vez na página 10 da edição de 19 de julho de 1931: “Realiza-se amanhã, na Capella do Mirante, no alto da Favela, grande festa religiosa” (Capella [...], 1931, p. 10). Deve ter sido a última missa ali celebrada, pois àquela altura já era um local considerado “inóspito”, como revela o final da nota, que louva o vigário da Igreja de Santo Cristo e duas jovens fiéis que “não medindo sacrifícios, transpõem por assim dizer as inóspitas pedreiras da Favela” (Capella [...], 1931, p. 10).

Observe-se que a designação “Oratório do Morro da Providência” só veio a ser adotada na década de 1980, época do seu tombamento. No início do século XX era designado como Monumento do Século XX, Monumento do Bom Jesus do Mirante, monumento do século XX em homenagem ao Senhor Bom Jesus do Mirante, capelinha do Senhor Bom Jesus do Mirante ou Capela do Senhor Bom Jesus do Mirante, abrigando num altar uma “bela e sagrada imagem, em tamanho natural, do Senhor Bom Jesus” (Senhor [...], 1926, p. 18).[4]

No transcorrer do século XX o morro foi, ao longo do tempo, totalmente ocupado pela favela, que chegou até o Oratório no alto e o Cemitério dos Ingleses na base. Na crônica “A Favela que eu vi” de 1924, o jornalista e escritor Benjamim Costallat descreve sua subida ao então conhecido como Morro da Favela:  

– Vamos ao morro do crime?...

– Vamos...

A Favela, ao longe, com os seus casebres minúsculos, parecia um presépio imenso.

Descemos na Rua da América. Uma das ruas mais sórdidas do Rio de Janeiro. Enlameada, imunda.

Ligada ao morro do Pinto pela Ponte dos Amores, a Favela, com os seus casebres, rebrilhava ao sol.[5]

Ponte dos Amores!...

Ela bem podia se chamar Ponte dos Suspiros, como a sua colega de Veneza.

Apesar de não ser de mármore, como a ponte dos doges, e sim de madeira muito tosca, a ponte que liga o Pinto à Favela tem visto também suspirar muita gente. Tem visto muito suspiro de agonia...

Há bem pouco tempo, assaltava-se em pleno dia, na Ponte dos Amores. À noite, matava-se.

Hoje, tudo está melhor.

Mas ainda é perigosa, muito perigosa, a ponte de madeira, agasalhadora dos amores violentos dos malandros e das crioulas... (COSTALLAT, 1990, p. 33)

Em 1952 uma cena aos 59 minutos do filme Tudo Azul, filmada no alto do Morro da Providência, com o oratório atrás, mostrou um grupo de lavadeiras lavando roupas ou carregando latas d’água, ao som da famosa canção “Lata d’água na cabeça / Lá vai Maria” interpretada por Marlene. Em 2010 o Morro da Providência abrigava 4.094 moradores segundo o censo demográfico daquele ano (Nunes, 2025)[6].

Figura 13: Cena do filme Tudo Azul, de 1952, dirigido por Moacyr Fenelon, filmada defronte ao Oratório.

Fonte: Captura de Tela, Tudo Azul, disponível no Youtube.

  1. Fortificação da Cidade após o Susto de 1711

A humilhação da invasão de 1711 fez com que os governadores e depois os vice-reis “corressem atrás do prejuízo” e se empenhassem em fortificar a cidade. Dada a visão privilegiada do alto do Morro da Providência, seria de esperar que fosse aproveitado ao menos como posto (atalaia) de observação.

O primeiro plano de fortificação, encomendado pouco depois dessa invasão ao engenheiro francês Jean Massé, preconizou a ampliação e reforma das fortalezas do litoral, construção ou reforma de fortificações no topo de quatro morros (Conceição, Santo Antônio, São Bento e Castelo) e a construção de uma muralha entre os morros do Castelo e da Conceição para a defesa do núcleo urbano, projeto que acabou não indo em frente, já que impedia a expansão natural da urbe (Santos, 2009). A Fortaleza da Conceição, prevista no plano, ficou pronta em 1718. Os morros na região do desembarque de Duguay-Trouin, do lado de fora da muralha planejada, não foram contemplados pelo plano de Massé.

Já o plano do engenheiro sueco Marechal Jacques Funck de 1768 contempla esses morros, dando estas recomendações:

A única defesa que, presentemente, há da parte da Campanha, consiste em duas Fortalezas, de S. Sebastião [no Morro do Castelo] e da Conceição, as quais são de pouca utilidade para aquela parte; além disto elas não se protegem nem dominam os seus subúrbios, quanto é bastante para a boa defesa – por causa do grande número de casas, que se cercam e que formam uma grande parte da Cidade avançando-se esta, muito avante das duas Fortalezas, para a parte da campanha, o que embaraça toda a defesa que elas poderiam fazer contra a aproximação da cidade – além dos inconvenientes acima referidos, contra as duas Fortalezas de que se trata, elas têm o grande defeito de serem comandadas, por outras duas alturas muito mais elevadas do que aquelas em que elas se acham construídas, cujas alturas ficam distantes de uma a outra 650 braças para a parte da Campanha, uma delas chamada Monte de S. Diogo que fica a oeste da cidade e a outra Monte de Santa Teresa que fica ao lado do sul da Cidade. Os cumes destas duas ficam quase, igualmente elevadas a uma altura da superfície do mar e também quase em igual distância da Cidade: uma e outra se inclinam quase com iguais escarpas até às margens da Baía onde elas se terminam. A situação destas duas alturas encerram entre si a Cidade e, por consequência, é toda dominada por elas, como também os seus subúrbios, pois o Monte de São Diogo está situado como muito mais vantagem para comandar a Campanha toda em roda a oeste da Cidade e uma boa parte da margem da Baía, e aquele de Santa Teresa comanda uma parte da campanha da frente da Cidade e também uma parte da margem que corre ao sul da Cidade: o resto da Campanha por este lado é coberto por uma altura muito elevada chamada Monte da Pedreira [atual Morro da Nova Cintra], que se une com o de Sta. Teresa e detrás da Cidade. (Antunes, 1957, p. 17)

Funck diz que a cidade daquela época (o atual centro da cidade) era “comandada” (“comandar” no sentido de “estar em situação sobranceira; estar em posição mais alta” – acepção 10 do verbete “comandar” do dicionário Houaiss) a oeste pelo Monte de S. Diogo e ao sul pelo Monte de Santa Teresa. Neste período, o Monte de Santa Teresa já não designava o atual Morro do Pinto, e sim o morro que até hoje traz esse nome, famoso pelo “bondinho”. Funck diz que ambos esses morros tinham mais ou menos a mesma altura, sendo bem mais altos do que os do Castelo e da Conceição. Ora, o único morro da costa norte da cidade (atual Zona Portuária) com altura semelhante à do Morro de Santa Teresa é o da Providência, com 115 metros – o Curvelo, em Santa Teresa, fica a 117 metros.

O “Plan des Fortifications Proposées sur la Hauteur de S. Diogo” (“Plano das Fortificações Propostas no Morro de S. Diogo”), desenhado pelo próprio Funck, com a legenda “NA SA DE LIVRAMENTO” sob a seta (só visível quando a planta é ampliada na tela do computador) indica que se trata, em verdade, do Morro da Providência.

Figura 14: “Plan des Fortifications Proposées sur la Hauteur de S. Diogo”, de Jacques Funck.

Fonte: Rede Memória

Também o mapa manuscrito do Rio colonial de 1760 indica que, àquela altura, “Morro de São Diogo” designava os Morros do Livramento/Providência.

Figura 15: Mapa do Rio Colonial de 1760 (detalhe).

Fonte: Biblioteca Nacional Digital.

Um vice-rei que muito se empenhou pela defesa da cidade foi o Conde de Resende. Em seu artigo “Fortificações do Rio de Janeiro”, o general Paranhos Antunes faz menção a:

Uma valiosa coleção de Planos feitos por ordem do Conde de Resende, Vice-Rei do Estado do Brasil, em que se mostram as Baterias, que novamente se erigiram para defesa da cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, assim como os consertos, e acréscimos que se fizeram nas principais Fortalezas, precedidos de dois Planos da Baía, que dão ideia da “entrada do Porto e das diferentes ancoragens, acompanhado de suas inscrições e Mapas das peças de artilharia (Antunes, 1957, p. 17).

Para se evitar a multiplicidade de baterias pelo seguimento do Saco da Gamboa e do Alferes e as despesas que elas fariam, foi resolvido que duas embarcações armadas na ocasião e postadas entre o morro da Saúde e a ilha das Pombas (atual Ilha de Santa Bárbara) fariam a defesa da entrada dos sobreditos sacos; ‘porém estes devem sempre ser protegidos pela fortificação que se pretende fazer sobre o Cume do Monte de Paulo da Caieira – lugar este de grande vantagem, porque ele comanda os ditos sacos que lhe ficam ao norte e comanda também para oeste até sul, Mata Porcos (Caminho do Mata Porcos, atual Rua Estácio de Sá), a estrada que vem para a Cidade e parte do Campo de Santana e do sul para leste até norte comando o resto do Campo de Santana, grande parte da Cidade e a fortaleza da Conceição’.” (Antunes, 1957, p. 17)

Vemos então que, a certa altura, cogitou-se em construir uma fortificação no cume do Monte de Paulo da Caieira, que nada mais é que o nosso Morro da Providência.

Figura 16: Detalhe da “Planta da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro levantada por Ordem de sua Alteza Real” de 1812 onde o Morro da Providência é chamado de Monte de Paulo da Caeira.

Fonte: Biblioteca Nacional Digital.

  1. Tentativa de Decifrar o Mistério do Oratório

Figura 17: O Oratório fotografado por Augusto Malta no início do século XX.

Fonte: Biblioteca Nacional Digital.

A versão de que o oratório foi erguido pelos soldados de volta de Canudos não resiste a uma análise mais detida. Quando fotografado por Augusto Malta no início do século XX, o “Oratório” ostentava no topo uma grande cruz e no frontispício, sobre a porta ogival, a inscrição “A JESUS CHRISTO” (a inscrição e a cruz superior se perderam). A leitura de jornais e revistas da época revela que foi inaugurado no dia 1 de janeiro de 1901, o primeiro dia do século XX, e erguido com o objetivo explícito de comemorar a passagem do século.

Uma leitura atenta das notícias da inauguração revela um dado interessante. Por exemplo, na pág. 2 da edição de 15 de dezembro de 1900 do semanário católico ‘O Apóstolo’ , lemos:

Está quase concluído o monumento, a grandiosa Cruz que no Morro da Providência será erigida para comemorar a passagem do século e o amor deste povo a Jesus Cristo Redentor. Será bento e inaugurado a 31 do corrente pelo Ex. Rvm. Sr. Arcebispo. Nossos louvores a seus promotores. (MONUMENTO, 1900a, p. 2)

Já na segunda página da edição de 22 de dezembro do mesmo ano, anunciava-se: “A inauguração da Cruz, que como monumento em honra a Jesus Cristo se erguerá no Morro da Providência, se realizará no dia 1 de Janeiro, às 5 horas da tarde, sendo benta pelo Ex. Sr. Arcebispo D. Joaquim Arcoverde.” (MONUMENTO, 1900b, p. 2)

A Gazeta de Notícias de 24 de dezembro de 1900, em matéria na primeira página intitulada Cruz Commemorativa, informa:

Está concluído o belo monumento comemorativo da passagem do século, no alto do Morro da Providência. Os esforços da valente comissão que tem à sua frente o infatigável cônego Curio foram coroadas [sic] de êxito completo, no dia primeiro lá se celebrará a missa, verdadeira missa campal, tendo por dossel o esplendor do céu e por perspectiva um dos mais belos panoramas de que se goza nesta capital. Na noite de 31 para 1, ao terminar o século XIX e ao surgir o século XX, estará o monumento iluminado. Em cada uma de suas três portas haverá uma cruz luminosa que pode ser vista e adorada a grande distância.  A missa de que será celebrante o Sr. cônego Curio, realizar-se-á às 10 horas da manhã, do dia 1 de janeiro. É fácil imaginar o que será o acio [?], em ponto tão elevado da cidade e onde se pode acomodar incalculável multidão de fiéis. À meia-noite deverá subir aos ares um enormíssimo balão que tem em uma das faces uma grande cruz luminosa. [...] No dia 1º, à tarde, o Sr. arcebispo irá visitar o monumento. S. Exa. Rvma. subirá pela ladeira do Barroso e por isso sabemos que os respectivos moradores já se preparam para enfeitar as respectivas casas, fazendo assim festiva recepção ao ilustre prelado a quem está confiado os destinos desta arquidiocese. A festa anuncia-se cheia de interesse e atrativos para a família católica. (CRUZ..., 1900, p. 1)

O Jornal do Brasil de 28 de dezembro de 1900, em matéria na primeira página intitulada “A Passagem do Século”, noticia:

Todo o mundo cristão prepara-se para solenizar a passagem do século expirante para o século XX [...]. No Rio de Janeiro, como em todo mundo católico, a Igreja solenizará a passagem do século, fazendo celebrar missas em várias matrizes.  No Morro da Providência será inaugurada a grande cruz em homenagem a Jesus Cristo Redentor e às 10 horas haverá missa solene.  Além destas cerimônias religiosas, a comissão organizadora da peregrinação santa resolveu aplicar o saldo das quantias para aquele fim angariadas nos festejos externos, que se efetuarão a 31. Nos morros da Providência, Valongo, Viúva, Castelo e outros serão queimados morteiros e vinte bandas de música militares percorrerão as ruas da capital e dos arrabaldes à meia-noite. (PASSAGEM..., 1900)

O jornal O Paiz de 30 de dezembro de 1900, em matéria da página 2 intitulada “O Século XX”, informa:  “Às 10 horas da manhã do dia 1 de janeiro, será solenemente inaugurada, no Morro da Providência, a cruz comemorativa da passagem do século, assistindo à cerimônia o Sr. arcebispo metropolitano” (SÉCULO…, 1900).

Observe que os artigos da imprensa dão a entender que o “monumento” que está sendo inaugurado é a “grandiosa cruz”, “cruz comemorativa” ou “grande cruz” (que depois se perdeu) no alto, não a estrutura completa. Teria sido a cruz então erguida sobre uma construção previamente existente naquele alto do morro? E em caso positivo, que construção seria essa? 

A fotografia de 1881 e as gravuras de 1847 e cerca de 1860 do início deste artigo revelam que sim. Ademais, vários mapas antigos mostram a existência de uma construção naquele ponto. Por exemplo, a “Planta da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, levantada por ordem de S. A. R. Príncipe Regente Nosso Senhor no ano de 1808” já vista neste artigo, e este “Plano da Cidade do Rio de Janeiro” de 1791:

Figura 18: “Plano da Cidade do Rio de Janeiro com a Parte Mais Essencial do seu Porto e Todos os Lugares Fortificados”, “elevado e sondado pelo Marechal Jaques Funck em 1788 e aumentado segundo o novo Plano da Cidade elevado em 1791”.

Fonte: Biblioteca Nacional Digital

4.1  Mas que construção seria essa?

Para responder a esta segunda pergunta vou recorrer a uma tese que o pesquisador independente Gilmar José Santana de Barros[7] me comunicou ao discutirmos o tema e gentilmente permitiu que eu utilizasse neste artigo. Sua ideia é que a “grande cruz” inaugurada na virada para o século XX teria sido erguida sobre uma velha atalaia abandonada, remanescente da ocupação francesa dos morros ou construída no século XVIII na onda de fortificação da cidade, da qual resultou também a Fortaleza da Conceição. Segundo ele, “as paredes muito grossas indicam construção antiga” e as portas que ofereciam ampla visão para os quatro pontos cardeais reforçam a tese de que se tratava de uma “guarita de vigilância marítima”. A forma ogival das portas teria resultado da conversão da velha e abandonada atalaia em oratório, quando o neogótico estava em voga, como mostra o castelo da ilha Fiscal inaugurado em 1889. Originalmente a atalaia servira para a vigilância da costa, especialmente se considerarmos o posicionamento escolhido abrangendo o fundo da baía, praia Formosa, Saco do Alferes e praia de São Cristóvão, zonas vulneráveis pois não podiam ser monitoradas dos três promontórios do Centro, São Bento, Conceição (recuado) e morro do Castelo.

A tese da atalaia é reforçada pelos planos de fortificação do Marechal Funck e aqueles encomendados pelo Conde de Resende, já vistos neste artigo, os quais, conquanto não cumpridos à risca, podem ter dado ensejo à construção ao menos de um posto de observação no alto do Morro da Providência. Também reforça a tese a informação do engenheiro militar Augusto Fausto de Sousa no artigo “Fortificações no Brasil”, na página 111 do tomo 48, Parte II, da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, de que “existia uma multidão de baterias e fortins em todo o contorno desde a Gamboa até a Praia do Arpoador”.

Desta forma, encerro o artigo com duas fotografias recentes, para apreciação do leitor:

Figura 19: Frente do oratório, fotografia tirada em 2015.

Fonte: Acervo pessoal

Figura 20: Fundos do oratório, fotografia tirada em 2015.

Fonte: Acervo pessoal

Referências

ANTUNES, G. D. PERANHOS. Fortificações do Rio de Janeiro: Memórias e Relatórios - Conclusão. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 130, n. 184. 12 maio 1957. 3º Caderno, p. 17. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/364568_14/43656. Acesso em: 13 maio 2025.

CAPELLA do Bom Jesus do Mirante (Favela) da Parochia de Santo Cristo dos Milagres. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano 41, n. 172. 19 jul. 1931. Secção Religiosa, p. 10. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/030015_05/14937. Acesso em: 12 maio 2025.

COSTALLAT, Benjamim. Mistérios do Rio. Rio de Janeiro, Biblioteca Carioca, 1990.

CRUZ commemorativa. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano 26, n. 357. 24 dez. 1900. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/103730_04/1684. Acesso em: 13 maio 2025.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional, Departamento Nacional do Livro, s.d.. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2163.

EDMUNDO, Luís. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília, Edições do Senado Federal, 2003.

GRANDES festas. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, ano 2, n. 463. 20 set. 1902. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/089842_01/2516. Acesso em: 12 maio 2025.

HOMICIDIO. O Paiz, Rio de Janeiro. Ano 12, n. 4134, 27 jan. 1896. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/178691_02/14780. Acesso em: 12 maio 2025.

IRMANDADE de Nossa Senhora da Penha. Conclusão de suas festividades. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano 21, n. 267. 24 set. 1911. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/030015_03/10255. Acesso em: 12 maio 2025.

LAGRANGE, Louis Chancel de. A tomada do Rio de Janeiro em 1711 por Duguay-Trouin. Traduzido por Mário Ferreira França. Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1967. Disponível em: https://imprensa2.in.gov.br/o/biblioteca-digital-internet-lf7_1-ce-theme/pdf/index.html?file=https://imprensa2.in.gov.br/documents/20127/0/A+Tomada+do+Rio+de+Janeiro+em+1711+por+Duguay+-+Trouin.pdf/8fb1e007-4489-04ae-3cbb-d3facbcfbeb5. Acesso em: 12 maio 2025.

UM MONUMENTO. O Apóstolo, Rio de Janeiro, ano 36, n. 73. 15 dez. 1900. Noticiario, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/343951/16586. Acesso em: 13 maio 2025.

MONUMENTO. O Apóstolo, Rio de Janeiro, ano 36, n. 74. 22 dez. 1900. Noticiario, p. 2. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/343951/16590. Acesso em: 13 maio 2025.

MORADOR AGRADECIDO, O. Correio Mercantil, Rio de Janeiro, Ano 14, n. 196, 19 jul. 1857. Disponível em: http://memoria.bn.gov.br/DocReader/217280/13555. Acesso em: 12 maio 2025.

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NUNES, Gabriel. Morro da Providência. 2025. Dicionário de Favelas Marielle Franco Disponível em: https://wikifavelas.com.br/index.php/Morro_da_Provid%C3%AAncia. Acesso em: 12 maio 2025.

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PERERECA, Padre (Luís Gonçalves dos Santos). Memórias para Servir à História do Reino do Brasil. Brasília, Edições do Senado Federal, 2013.

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RIO DE JANEIRO. Prefeitura Municipal. Guia do Patrimônio Cultural Carioca: Bens Tombados. Rio de Janeiro, [s.n.], 2014, 5a ed.

SANTOS, Jorge Paulo Pereira dos. O papel das invasões francesas nas estratégias de reestruturação da defesa do Rio de Janeiro no século XVIII. 2009. 129 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

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Sobre o Autor

Ivo Korytowski, graduado e licenciado em Filosofia pela UFRJ, é escritor com três obras premiadas, tradutor aposentado, pesquisador da história do Rio de Janeiro, blogueiro e Youtuber. Tem artigos publicados em diversas revistas, como a Revista Brasileira da ABL, Revista do IHGB, Revista do IHGRJ, entre outras.

Contribuições do Autor

Conceituação, I.K.; metodologia, I.K.; software, I.K.; validação, I.K.; análise formal, I.K.; investigação, I.K.; recursos, I.K.; curadoria de dados, I.K.; redação—preparação do rascunho original, I.K.; redação—revisão e edição, visualização, I.K.

Conflitos de Interesse

O autor declara não haver conflitos de interesse.

Sobre a Coleção Estudos Cariocas

A Coleção Estudos Cariocas (ISSN 1984-7203) é uma publicação de estudos e pesquisas sobre o Município do Rio de Janeiro, vinculada ao Instituto Pereira Passos (IPP) da Secretaria Municipal da Casa Civil da Prefeitura do Rio de Janeiro.

Seu objetivo é divulgar a produção técnico-científica sobre temas relacionados à cidade do Rio de Janeiro, bem como sua vinculação metropolitana e em contextos regionais, nacionais e internacionais. Está aberta a quaisquer pesquisadores (sejam eles servidores municipais ou não), abrangendo áreas diversas - sempre que atendam, parcial ou integralmente, o recorte espacial da cidade do Rio de Janeiro.

Os artigos também necessitam guardar coerência com os objetivos do Instituto, a saber:

  1. Promover e coordenar a intervenção pública sobre o espaço urbano do Município;
  2. Prover e integrar as atividades do sistema de informações geográficas, cartográficas, monográficas e dados estatísticos da Cidade;
  3. Subsidiar a fixação das diretrizes básicas ao desenvolvimento socioeconômico do Município.

Especial  ênfase  será  dada  no  tocante  à  articulação  dos  artigos  à  proposta  de desenvolvimento  econômico  da  cidade.  Desse  modo,  espera-se  que  os  artigos multidisciplinares   submetidos   à   revista   respondam   às   necessidades   de desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro.

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[1] Jean-François Duclerc foi um corsário francês que atacou o Rio de Janeiro em fins de agosto de 1710, mas foi derrotado.

[2]  O autor da narrativa, 1º Tenente Louis Chancel de Lagrange, servia a bordo da fragata L’Aigle, um dos dezessete navios que constituíam a armada francesa de René Duguay-Trouin.

[3] Escreve o padre: “continua pelo mesmo lado o grande morro do Livramento, em cujo cume se nota uma bela casa de campo, e contígua a ela a capelinha de Nossa Senhora, da mesma invocação”. Padre Perereca, Memórias para Servir à História do Reino do Brasil. Brasília, Edições do Senado Federal, 2013, p. 38.

[4] Conforme revela um anúncio da zeladora da capela, Thereza Maria de Jesus, à página 18 do Jornal do Brasil de 15 de julho de 1926, intitulado “Senhor Bom Jesus do Mirante”, pedindo contribuições, “quer em dinheiro, quer em materiais”, para a restauração de seu interior.

[5] Com a construção do viaduto nos anos 1970, a ponte ligando os dois morros foi derrubada.

[6] Dicionário de Favelas Marielle Franco, verbete “Morro da Providência”.

[7] O referido pesquisador nunca publicou um artigo apresentando sua tese. Ao ler no meu blog “Literatura, Rio de Janeiro & São Paulo” postagem sobre o Oratório, que eu havia visitado, ele me contactou e comunicou sua hipótese da atalaia. Como no início não dei crédito, enviou argumentações e evidências que acabaram me convencendo. Sugeri que escrevesse um artigo, mas ele não quis, então propus aprofundar o estudo e eu mesmo escrever sobre o tema, e ele concordou. Após a pandemia, infelizmente nunca mais consegui contactá-lo.